"Deus me livre de ser normal." (Prof. Hermógenes)
Normose: "conceito de filosofia para se referir a normas, crenças e valores sociais que causam angústia e podem ser fatais, em outras palavras 'comportamentos normais de uma sociedade que causam sofrimento e morte'. Dessa forma os indivíduos que estão em perfeito acordo com a normalidade e fazem aquilo que é socialmente esperados acabam sofrendo, ficando doentes ou morrendo por conta das normoses. É comum justificar a manutenção de um comportamento não saudável por ser normal, algo que 'todo mundo faz', porém essa justificativa é falaciosa e acaba apenas perpetuando uma sociedade cheia de normoses". (Wikipédia)
Reproduzimos, para reflexão, o texto que se segue:
“Ser ajustado a uma sociedade profundamente doente não é
sinal de saúde”. (Jiddu Krishnamurti)
Alguns já estão familiarizados com o conceito de “normose”
e também com o trabalho do educador e psicólogo francês Pierre
Weil (1924-2008), Doutor em Psicologia pela Universidade de
Paris e autor de “A Neurose do Paraíso Perdido”, “Antologia do Êxtase” e “As
Fronteiras da Evolução e da Morte”, mas talvez alguns ainda não estejam com
a história pessoal que levou Pierre a se perceber um normótico em
si mesmo e, a partir daí, a tomar um rumo diferente e a trabalhar
profissionalmente, como psicólogo e palestrante, esse novo conceito. No
texto abaixo, Pierre conta parte dessa história, fala de como saiu de uma
infelicidade pessoal, de uma separação e de um câncer para o Tibete, para o
ioga e para a fundação da UNIPAZ, a conhecida universidade da Paz fundada
em Brasília em 1987.
Um dos problemas das correntes da normose é que
elas são inconscientes e silenciosas. Mas, como Pierre afirma no texto
abaixo, de sutis e fracas elas não tem nada: a normose é “um processo
psicossociológico que ameaça a humanidade e as outras espécies vivas no planeta
Terra, uma verdadeira fonte de sofrimentos e de tragédias, das mais
diversas proporções”.
“A normose pode ser considerada como o conjunto de
normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir
aprovados por um consenso ou pela maioria de pessoas de uma determinada
sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes. Em outras palavras: que
são patogênicas ou letais, executadas sem que os seus autores e atores tenham
consciência da natureza patológica.” ~ Pierre Weil
“NORMOSE” [TRECHOS]
Por Pierre Weil
“(…) A maneira mais simples de fazê-los
entender do que se trata será contando um pouco do que se passou comigo há
algumas décadas. Isso nos levará, ao mesmo tempo, aos aspectos pessoais e
sociais que levaram à criação do conceito de normose. Lembro-me da crise
existencial pela qual passei aos trinta e três anos de idade. Com o
conhecimento que tenho hoje, identifico-a como conseqüência de uma normose.
Foi, tipicamente, a crise de um normótico que ainda não sabia nada a respeito
da normose. Fazia prosa sem o saber, como diz um jargão popular.
Por que afirmo que eu era normótico? Minha crise ocorreu
por eu ter procurado ser normal, de ter realizado o que uma sociedade
recomendava e recomenda até hoje sobre o que é ser um homem bem-sucedido. A
sociedade, por meio dos meus pais, moldara um ser humano bem-sucedido aos
trinta e três anos. Um homem de sucesso porque eu tinha tudo: tinha a minha
residência, tinha a minha casa de campo, tinha a minha piscina, tinha meu cargo
na universidade, tinha o meu cargo junto ao presidente do maior banco da
América Latina, tinha o meu consultório, tinha o meu livro best-seller, tinha
entrevista na televisão, tinha, tinha, tinha, tinha… E minha normose era,
justamente, ter. Havia introjetado toda uma civilização do ter. Eu tinha, tinha
tudo e estava muito infeliz, não era um homem realizado. Conformado a este
contexto, eu acabei tornando-me normótico.
Por quê? Porque eu segui a norma que me levou à
patologia: a patologia moral – era profundamente infeliz; a patologia social –
me divorciei porque, quando se está infeliz, culpam-se os outros; e uma
patologia orgânica – a separação me levou a fazer um câncer. Então, já temos o
conceito da normose: é o conjunto de hábitos considerados normais e que, na
realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade e à doença. Embora
resumida, é a definição que eu tenho seguido até hoje, muito útil e clara. Para
sair da normose, deitei no divã do psicanalista e resolvi aprender e praticar
ioga. Foi numa sessão de ioga que descobri a relatividade do conceito de normalidade.
Vou contar a história, pois é muito ilustrativa. Todas as quartas-feiras à
noite nosso grupo se reunia e o professor nos fazia relaxar, com música, e
meditar. Depois, cada um relatava a sua experiência. Um dizia: eu vi um ser.
Outro: eu vi cores. Outro ainda dizia: eu vi formas. Um
mais: eu tive uma inspiração maravilhosa. E, quando chegou minha vez, eu disse:
gente! Eu estou tapado. Eu não estou vendo nada! Isso transcorreu durante um
ano. Foi aí que comecei a observar a relatividade do conceito de normalidade:
nesse grupo, todo mundo tinha visões e eu não. Então, o grupo era normal e eu
era anormal. Lá fora, nos dois milhões de habitantes de Belo Horizonte, quase
ninguém tinha visões. Então, eu era normal e o grupo era anormal. Foi quando
comecei a cogitar sobre a relatividade do conceito de normalidade.
A fantasia da separatividade
O estudo da ioga me levou ao hinduísmo, ao budismo e ao
conceito de maia. Constatei que essa nossa maneira de ver as coisas é uma
fantasia. Mais tarde, eu a denominei de fantasia da separatividade.
Quando criamos a Universidade Holística, ao fazer o
estudo da gênese da destruição da vida no planeta, descobrimos que sua raiz
está em que consideramos a ilusão como normal. É um conceito provido de
consenso social, que pode levar ao suicídio da humanidade. A isso se
acrescentou, então, a noção de consenso: uma crença partilhada por uma maioria.
Os estudos de ioga me levaram a fazer um retiro com lamas
tibetanos. Fui para esse retiro especialmente para entender por que
os tibetanos insistiam Maia: termo sânscrito, que significa ilusão, em seu
sentido mais geral. tanto no caráter do sonho em nossa vida cotidiana. Ou seja,
a semelhança entre o estado de consciência de vigília e o onírico. E lá eu
aprendi, por mim mesmo, por meio do sonho lúcido, que a nossa vida cotidiana é
como se fosse um sonho. Não tem muita diferença não. E todos acreditam nesse
sonho. Voltamos à noção de normose e de consenso.
Um dia, em 1986, ao sair do retiro tibetano, Jean-Yves
Leloup me convidou para um simpósio sobre a normalidade, no Centro
Internacional de Saint-Baume. O local era um tipo de universidade holística,
com um ambiente como o da Unipaz, que ele dirigia, no sul da França. Lá se
encontrava e podia ser visitada a gruta onde Maria Madalena se refugiou depois
da passagem de Jesus. E lá, a seu pedido, proferi uma palestra sobre as
anomalias da normalidade.
Então, surgiu a ideia de que a normalidade podia ser
patológica e patogênica. Todo o seminário versou sobre a definição do que é
normal, tarefa nada fácil. O que é normal, afinal? De qualquer forma, a criação
do conceito de normose nos força a buscar definir o que não o é.
Um conceito que me trabalhou
Fiz uma experiência em que procurei colecionar todas as
atribuições que se costuma fazer às pessoas julgadas anormais. Por exemplo:
você é um i*****; você é um irresponsável; você é maligno, etc. Fiz uma coleção
de umas trinta ou quarenta epítetos. Em seguida, traduzi-os ao seu contrário,
pensando que, talvez dessa forma, poderia definir o que é normal. Para surpresa
minha, saiu uma lista do que é um santo. Por esse procedimento empírico, um ser
normal seria um santo. Será? Deixo a ideia para reflexão.
Depois disso, o conceito de normose ficou me trabalhando
porque um conceito novo nos trabalha. De vez em quando, eu o usava nas
palestras. Notei que, a cada vez que pronunciava a palavra normose, as pessoas
riam muito. Percebi, então, que a reflexão estava mexendo com alguma coisa
fundamental. Inquietava as pessoas. Pouco a pouco me dei conta, entretanto, que
esse é um conceito fundamental em psicologia, em sociologia, em antropologia,
em educação e nas demais disciplinas e áreas de atuação humana. Mais ainda:
evidencia um processo psicossociológico que ameaça a humanidade e as outras
espécies vivas no planeta Terra. Uma verdadeira fonte de sofrimentos e de
tragédias, das mais diversas proporções. Foi quando realizei uma primeira
classificação das normoses. E continuo descobrindo outras em minhas reflexões
cotidianas. (…)
A característica comum a todas as formas de normoses é
seu caráter automático e inconsciente. Podemos falar, no caso, do espírito de
rebanho. A maior parte dos seres humanos, talvez por preguiça e comodidade,
segue o exemplo da maioria. Pertencer à minoria é tornar-se vulnerável, expor-se
à crítica. Por comodismo, as pessoas seguem ou repetem o que dizem os jornais;
já que está impresso, deve estar certo! Quantas pessoas aderem a uma ideologia,
religião ou partido político só porque está na moda ou para ser bem vistas
pelos demais?
Uma maneira disfarçada de manipular as opiniões e mudar
os sistemas de valores é anunciar que são adotados pela maioria da população. Nesse
sentido, toda normose é uma forma de alienação. Facilita a instalação de
regimes totalitários ou sistemas de dominação. (…)
A tomada de consciência da normose e de suas causas
constitui a verdadeira terapia para a crise contemporânea.”
Fonte: